sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Crônicas de Delegacia III: O Cárcere


Ela nunca tinha visto imagens tão chocantes. O barulho da batida das portas de ferro lhe era até familiar devido sua fixação por filmes policiais. Mas sentia algo diferente ao estar ali. As imagens de um lugar envolto a grades e cimento... um mundo paralelo em tom cinza e âmbar... onde, fosse qual fosse o foco dos seus olhos, não era possível encontrar harmonia. Um cenário deprimente. E os homens que viviam ali, pareciam fazer parte dele. Olhares sem esperança. Pessoas também em tons cinza e âmbar. Em uma das paredes, um vestígio de poesia para mostrar que a vida existia, apesar de parecer não estar ali... quase apagadas, as letras denunciavam resquícios de humanidade: "Viajo em um barco, a procura de um porto, cujo nome é a liberdade."
Panos sujos por todos os lados, insetos habitantes da sujeira, sujeira por toda parte. Roupas rasgadas, pés descalços. Um lugar absoluto em ausência de tudo o que é bom. A dor era a palavra de ordem... a dor que podia ser sentida de longe... um mundo paralelo, ou melhor, um submundo. Mas caso o cenário, os olhares, a miséria lhe tivessem deixado alguma dúvida quanto a que lugar era aquele... o cheiro da morte confirmava que o inferno era ali.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Crônicas de Delegacia II: Fechar os olhos



Como em uma história de novela, Carla, parecia ser a mocinha. Uma jovem mulher trabalhadora, lutadora. Mãe de dois filhos, casada, emprego fixo. Mania de limpeza, sua casa era um brinco. Sua imagem também, impecável, unhas feitas por ela mesma, mas bem feitas. Maquiagem leve, luzes no cabelo castanho.
Carla trabalhava como costureira em uma fábrica, ganhava pouco, mas com o seu salário e o do marido, tinham uma vida digna, capaz de suprir as necessidades daquela família. A empresa em que exercia sua função, no geral era um bom local de trabalho. Um ambiente saudável, relativamente leve. E Carla era uma funcionaria de confiança, alguém reconhecidamente de bom caráter,  por isso tinha grandes perspectivas de crescer na empresa.
Porém, nas últimas semanas, Carla percebera algo um pouco estranho, a empresa que confeccionava bonés e camisetas promocionais para festas, eventos, etc., tinha agora um novo desafio produtivo. Fabricaria grandes marcas.
Carla achou um pouco estranho que a pequena fábrica em que trabalhava, numa cidade do interior, pudesse começar a fabricar marcas tão relevantes. O alerta de sua intuição ligou. Mas ela seguiu em frente, afinal era apenas uma funcionária. E depois, certo ou errado, isso era comum, normal. Quantas vezes comprara um DVD na banca da rua de um filme que ainda estava em cartaz no cinema, quantas vezes fora a 25 de março em São Paulo comprar uma besteira ou outra.
Contudo, por mais normal que tudo parecesse, não era lícito. E em uma manhã de quarta-feira, isso tudo ficou claro. A polícia entrou. Os donos não estavam lá. E na ausência deles, Carla apresentou-se como responsável pelo local. Ela, uma mulher simples e de bem. Não tinha medo, porque achava que não devia nada, apenas cumpria sua função.
Mas as provas do crime de falsificação, estavam lá. Um flagrante delito. E Carla, que sempre assistia na televisão casos extremos, agora era protagonista, na vida real, de uma história triste. Estava presa. E também desesperada. Não acreditava que aquilo pudesse acontecer com alguém como ela, muito menos com ela.
Um dia inteiro de tensão, na véspera de um feriado, se as coisas não melhorassem naquele mesmo dia, tudo se prorrogaria ao menos por quatro dias, quatro eternos dias, e o pior, quatro noites, num ambiente que jamais imaginou estar, que jamais desejou estar.
Não conseguia comer, não conseguia pensar. O advogado que a empresa mandara não lhe inspirava confiança. Perguntava-se até onde aquela terrível circunstancia iria. Sentia muita dor. Sentia raiva, vergonha, culpa, humilhação. Só pensava em ir embora, em seus filhos, nas pessoas que amava. O que elas pensariam? Como ela andaria novamente de cabeça erguida?
Ao fim do dia, quando o Sol já estava indo embora, pode finalmente respirar. O juiz havia expedido seu alvará de soltura, responderia por aquele fato ilícito em sua casa, poderia provar que não estava envolvida, que só cumprira ordens.
Um trauma. Mas também uma lição. Não pode haver naturalização do crime. Basta ser pego uma única vez para que as coisas se compliquem. E mesmo que você não o cometa, fechar os olhos é compactuar com ele. Carla nunca mais seria a mesma depois deste fato. Aprendera que tudo na vida passa por escolhas. E que ficar calado, as vezes, pode ser a pior de todas elas.  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Prece


Não se apresse meu bem,
Não se apresse...
Antes do amor acontecer,
Ele há de ser uma prece!

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Crônicas de Delegacia I: Dona Laura


Dona Laura vagava pelas ruas dia após outro. Os moradores estavam acostumados com sua presença. Volta e meia batia palmas na frente das casas, pedia um café, um prato de comida, e assim o tempo passava, assim o seu tempo ia. Dormia no antigo bar do campo de futebol do bairro. Ali acumulava coisas que as pessoas não queriam mais, objetos que tinham com ela mesma, profunda identidade. 
Mas em uma madrugada qualquer, destas que ninguém teve insônia, a angústia da maior parte de quem vive, chegou a ela. Possivelmente acordada, provavelmente em meio a dor. E só, absolutamente só. No pescoço uma corrente, com um pingente de cruz, onde talvez, guardasse a esperança... não sei. Sei que o que estava ali não era ela, não mais. Um objeto rígido, entregue, vazio. Ela não tinha ninguém, não era prioridade na vida de ninguém, sua única sobrinha fora contactada, e ao saber da notícia, não pode comparecer ao local, pois estava ocupada. E assim partiu, no fim de sua história, um frio boletim de ocorrência. As fotos de seu corpo ausente de alma para o registro policial talvez tenham sido os únicos retratos seus em toda a vida, ou talvez não, talvez antes tenha tido alguma história bonita, alguma história de amor. Em sua memória, além dos registros oficiais, esta crônica, esta crônica de delegacia. 

sábado, 2 de novembro de 2013

Eu já vou indo...


Eu já vou indo.
Deixei a casa arrumada,
A geladeira vazia,
Nenhuma louça na pia.

Eu já vou indo.
Meio feliz pelo desconhecido,
Meio triste... triste e meio.
Por tudo o que foi dito.
Pelo que ficou calado.
Por tudo o que ficou certo,
Pelo que fiz errado.

Eu já vou indo.
Mais uma vez vou indo...
Deixando um ou outro
Amor mal resolvido,
Uma ou outra tarefa por fazer,
Alguma coisa da vida por viver.

Eu já vou indo.
E sinto... sinto muito,
Muito de não sei o quê.
Muito do que não sei porquê.

Eu já vou indo.
Talvez logo ali,
Eu esteja de novo vindo,
Pode ser...

Mas sei que já vou indo,
Com a alma ardendo,
E o coração doído.
Mais uma vez...
Eu já vou indo.